quarta-feira, 9 de setembro de 2009

AUTONOMIA DE VÔO



Artigo publicado na revista Educação, São Paulo, Segmento, ano 11, n.128, p. 66-67, dez. 2007.

Lucília Coimbra*

Muito se tem falado sobre o desinteresse dos alunos pela boa leitura. Mas, de que leitura se trata? De textos impressos? Quem pode determinar o que é uma boa ou má leitura, sem levar em consideração o universo dos educandos? Essas reflexões são pertinentes, num momento em que as possibilidades de leitura se multiplicam com uma velocidade impensável há poucas décadas.

É bem simples afirmar que os alunos não lêem. O que há, na verdade, é sempre alguém decidindo o que eles devem ler. No caso dos livros denominados paradidáticos ou mesmo os da literatura consagrada, eles não os escolhem e, na maioria das vezes, lêem sem envolvimento, apenas por obrigação. Onde está a autonomia do leitor? Seu campo de interesse é levado em conta? Em salas de aula, é comum utilizar como principais instrumentos de leitura, apenas o livro didático e variações - módulo, apostila, reproduções xerográficas avulsas - e livros escolhidos pelos professores. Nesse caso, a participação do aluno é totalmente anulada.

Sabe-se que muitas escolas, normalmente, privilegiam o texto escrito, automatizando-o, sem considerar outras possibilidades de leitura que contribuam para uma melhor ampliação do universo cultural dos educandos. E isso é possível por meio da leitura das diversas formas de expressão, também consideradas linguagens, no sentido amplo, tais como a pintura, a escultura, o filme, a música, a peça teatral, a fotografia etc.

Vivemos em uma sociedade multicultural que produz intensamente bens simbólicos não-verbalizados resultantes da criação estética e comunicacional. Estes devem ter espaço para as devidas apreciações, mesmo porque ampliam saberes ao longo da história.

Aqui, centraremos a nossa discussão no que se refere às perspectivas textuais representadas no material didático, principal instrumento de mediação da aprendizagem no espaço escolar. Nele, ainda encontramos situações que se distanciam da realidade dos alunos. Ora, se os educandos não forem preparados para compreender as formas de linguagens que os rodeiam, e, se os textos escritos não apresentam nenhuma ligação com o seu cotidiano, ou que sejam do seu interesse, possivelmente a leitura não terá a funcionalidade que dela se espera.

Em certos livros didáticos, notamos a presença de textos que não despertam o interesse dos alunos para a leitura e nem propõem uma intervenção do leitor. Textos dessa natureza, geralmente, são subutilizados como pretextos para outras atividades, tais como: abordagem gramatical, ensino da ortografia para apropriação do sistema de escrita e conhecimento do vocabulário. Esse fim utilitário descarta todas as possibilidades de análise que uma leitura apropriada pode oferecer e não provoca, nos educandos, o interesse pelo ato de ler.

Espera-se que os alunos despertem para o prazer da leitura, que se transformem em leitores atentos, tenham capacidade de abstração e de interpretação, adquiram autonomia. Expectativas que, na maioria das vezes, não condizem com as práticas empregadas pela escola, a exemplo da uso constante de textos fragmentados e/ou inadequados, principalmente no material didático. Trata-se de um fator relevante, já que pedaços de textos não contêm todas as intenções do autor para o leitor, de maneira que este perceba o implícito, as idéias subjacentes que exijam dele intervenções na recepção textual. Dessa forma, a leitura não contribui para a formação do leitor.

Outro fator importante: a escola não deve desconsiderar que o envolvimento com a leitura varia de aluno para aluno, o que impossibilita o nivelamento dos leitores. Além disso, determinadas práticas de implantação da leitura no ambiente escolar não funcionam. A lista de livros preparada pela escola não incentiva a leitura, pois não considera o interesse do aluno e o prazer que a escolha de um livro ou de um texto pode proporcionar. Muitas vezes, as obras selecionadas, à revelia do leitor, têm foco na avaliação escrita no final de cada período pedagógico. É assim que se estabelece a distância entre o aluno e a biblioteca. Por que visitar uma biblioteca, se já existe uma lista de livros determinando o que deve ser lido?

A formação de um leitor passa por um processo e não se deve considerar a leitura apenas a decodificação de sinais gráficos. Ela vai muito além: possibilita intervenções, questionamentos, inferências e hipóteses. No caso da educação de jovens, necessário se faz oferecer-lhes subsídios, com base na construção e na participação efetiva que contribuam para a sua transformação em produtor de significados, capaz de lidar com os diferentes códigos - lingüísticos e não-lingüísticos - na escola e na sociedade em que vive. Se a leitura for conduzida de forma mecânica, ou considerada como atividade secundária, provocará nos alunos dificuldades em abstrair idéias e realizar análises críticas que culminem em ações transformadoras.

No âmbito educativo, a leitura é atividade precípua no processo de ensino e de aprendizagem, pois permite aos educandos elaborar seu mundo de referências, formar opiniões e fazer intervenções. Tais possibilidades lhe aguçam uma percepção mais consciente do que está ao seu redor, como também da interpenetração entre os vários campos do conhecimento - cultural, histórico e científico, por exemplo -, o que faz da leitura um passaporte para a aquisição de experiências significativas para o indivíduo e para o grupo social a que pertence.

Pensar os problemas da leitura na escola deve ser uma preocupação constante não somente das instituições de ensino. Formar sujeitos leitores significa permitir-lhes acesso ao bens culturais e condições de interagir com outros sujeitos no espaço social, o que resulta em melhor desenvolvimento da própria sociedade. O redimensionamento das atividades de leitura é de grande importância, quando se considera os contextos em que vivem os educandos e que competências se pretende neles desenvolver.

A criação e implementação de projetos com foco nas relações entre os diversos gêneros de textos e diversidade de linguagens, integrando-os à vida prática do aluno, é um passo decisivo para promover mudanças e permitir que a leitura contribua para ampliar as habilidades lingüísticas dos indivíduos em situação escolar, de forma que eles possam aplicá-las na vida em sociedade.

*Especialista em Estudos Lingüísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia e docente da rede oficial de ensino do Estado da Bahia.

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